A palavra e a garganta
Margaret Atwood, Nicole Loraux e Silvia Federici tomando uma talagada de Diabo Verde na encruzilhada.
[Início da conjuração:
Hécate, Hécate, Hécate]
Tenho um caderno onde anoto as minhas pirações, isto é, as leituras que me causaram algum tipo de curto circuito mental. Ao longo dos anos, quando abro esse caderno para adicionar mais um item à lista, repasso rapidinho os olhos nela, em uma espécie de ritual silencioso de rememoração, tentando acessar aquele barato que tive quando do primeiro impacto. Existe um livro-ensaio em eu amo em especial: Maneiras trágicas de matar uma mulher, da helenista Nicole Loraux. Nele, a Loraux vai destrinchar os modos de representação das mortes trágicas das heroínas das tragédias gregas, sua gramática e suas implicações analíticas, sobretudo para os leitores, ou seja, todos nós que somos, infelizmente, privados do contexto da representação dessas peças.
Posso dizer que esse texto me trouxe uma chave de leitura que eu levei comigo em todas as aulas que dei nos anos seguintes sobre tragédias gregas. Visto que a maioria das peças sobreviventes possuem por título nomes ou grupos de mulheres, [Antígona, Medeia, Alceste, Electra, Ifigênia, Hécuba, Helena, As Suplicantes, as Coéforas, As Fenícias, etc] era fundamental para mim entender o tratamento trágico [e, portanto, político, em se tratando do contexto ateniense] e a gramática do feminino que eram postos em cena.
A partir da conjuração da Loraux e com a atenção fixa nas vias trágicas das mortes das mulheres, dois significantes tornaram-se fundamentais nas encruzilhadas das minhas leituras e aulas: o primeiro deles: a palavra, que os gregos chamavam nome. Pausa no texto. Suspiro. Isso de a palavra ser um nome é de uma outra ordem de relação que nós, os combalidos da linguagem, os que marchamos penosamente sobre os destroços das sentenças, não podemos perceber. O segundo é: a garganta, precisamente a parte da frente do pescoço, considerado como o ponto forte da beleza das mulheres, para seguir a Loraux de perto.
Era por estrangulamento ou enforcamento que os trágicos gostavam de por termo à vida das personagens mulheres. Apertando-lhes, sufocando-lhes, impossibilitando-lhes, aniquilando-lhes a palavra ou o nome. Se é pela garganta que as mulheres devem perecer, não parece estranho que seja também por ela que as mulheres sejam admiradas. Na Ilíada, Helena reconhece a deusa de “garganta delicada e esplêndida”. É também na garganta que as mulheres enlutadas golpeiam para dar mostras de sua dor. A garganta é um significante importantíssimo, ponto máximo de fragilidade.
A Federeci do Calibã e a Bruxa, que, anos depois, veio integrar a lista do meu caderno, sorriu para a Loraux e, desde então, vêm conversando a plenas goelas dentro da minha cabeça. Reconheço que o aceno à terceira invocada nesse conciliábulo fica bastante evidente, mas tantas pesquisadoras maravilhosas e alguns homens ok já escreveram belamente sobre ela, que só me resta anunciar sua presença silenciosa entre nós. Certa feita , cometi uma tese de doutorado sobre O Conto da Aia, obra daquela outra bruxona que amo desesperadamente, dona Margaret. Lá as três trocaram um papo mais formal, sem Diabo Verde. Para os corajosos [ou acadêmicos] deixo o link para a tese aqui

Certa vez minha Loraux do coração encontrou dona Margaret em uma tarde em que, exausto de tanto pesquisar, de tanto ler o nome/palavra Offred diante dos meus olhos, eu resolvi descansar um pouco. Acontece que meu traço obsessivo aparecia constantemente diante da pesquisa e eu, como um psicopata, descansava lendo. Para meu prazer, dizia-me eu, Lia o quê? Ora, claro, umas conferências antigas que a bruxona canadense tinha proferido no início dos 1980, anos antes da publicação do Conto da Aia, onde, iludia-me eu, não encontraria nenhuma referência direta ao meu objeto de pesquisa. [Risos de rachar a goela agora]. Em uma conferência chamada Witches, [O nome da coletânea de conferências da bruxona de onde saiu essa maravilha é Second Words e infelizmente não tem no Brasil, embora devesse]. Atwood contou a história de sua ancestral, cujo trecho traduzo abaixo:
“Senti que era apropriado falar de bruxas aqui na Nova Inglaterra, por razões óbvias, mas também porque essa é a terra dos meus ancestrais, e uma de minhas ancestrais era uma bruxa. O nome dela era Mary Webster, ela morava em Connecticut e foi enforcada por “fazer com que um velho se tornasse extremamente enfermiço”. Por sorte, eles ainda não tinham inventado o cadafalso: naquela época eles meio que penduravam você. Quando eles desceram Mary Webster no dia seguinte, ela não estava, para surpresa de todos, morta. Por causa da lei de dupla incriminação, que diz que ninguém pode ser executado duas vezes pelo mesmo delito, Mary Webster foi libertada. Se todos pensavam que ela tinha poderes ocultos antes do enforcamento, espero que eles tenham ficado ainda mais convencidos disso depois. Ela é minha ancestral favorita, mais querida ao meu coração até do que os corsários e os massacrados protestantes franceses, e se há uma coisa que espero ter herdado dela, é o pescoço.”
Então, o pesquisador obsessivo/psicopata se lembra que o Conto da Aia possui uma dedicatória a essa ancestral Mary Webster. Fim do descanso. Voltemos ao giro obsessivo da pesquisa. Dedicatória, aquela coisa que fica praticamente jogada ali, no início de um livro, em que raramente prestamos atenção. A bruxona malandra era bem paramentada de marginalidades editoriais: epígrafes, dedicatórias, posfácio; sub-textos que, conjurados, sussuravam encantamentos aos ouvidos iniciados: para ser uma mulher da palavra/nome, era necessário mais que mãos de escrever: era fundamental ter um pescoço resistente.
Loraux se apresenta para a conversa: ora, eu dizia, o enforcamento é a morte feminina por definição. No código da tragédia, há modos de morrer segundo os quais as mulheres permanecem plenamente mulheres. Uma série de palavras e imagens nas tragédias ajudam a entender essa diferença. Afinal, há mulheres que morrem uma morte masculina, ou seja, pela via da espada. [será que falo de Lacan?] O caso clássico de Clitemnestra, a esposa assassina do marido, vai morrer trespassada pelo gládio. Como um homem. A morte matada é masculina.
Já a morte morrida, ou o suicídio, é feminino. E, inevitavelmente, se realiza com o auxílio de uma corda a esmagar o pescoço. Podemos abusar do significante corda e dizer que nele a expressão da feminilidade pode se desdobrar infinitamente: as mulheres e as moças sabem que a corda – instrumento usual do enforcamento – pode ser substituída no laço feito de um véu, pelos adornos com que se cobrem e que são emblemas de seu sexo. Véus, cintos, faixas: instrumentos de sedução, armadilhas de morte.
Não é, entretanto, qualquer mulher que tem direito a ser a autora da própria morte. O suicídio é saída trágica das mães e das esposas [quantas vezes teria Jocasta, então, se matado?] As virgens eram sacrificadas. Como os animais nas práticas religiosas cívicas, eram degoladas sob rígido protocolo. O gênero trágico, sempre atento ao que conta os mitos, oferece as jovens ao cutelo do degolador. Desse modo, o incivilizado, o impensável, é, então, narrado. É imprescindível conjurar Louraux novamente:
a cidade, na realidade, não sacrificava suas moças; mas, na oportunidade de uma representação, ela oferecia aos cidadãos a dupla satisfação de transgredir imaginariamente a proibição do phonos [assassinato] e de sonhar com o sangue das virgens.
Os ruídos teóricos da Loraux encontraram os sussurros contados por Dona Margaret. A palavra e a garganta também são importantes significantes em O conto da aia. A serva escarlate sem nome/palavra não tem direito à voz. Ao contrário da série, o romance mantém em sigilo o verdadeiro nome de Offred, que não deve ser conjurado. Acontece que, mesmo sem direito à fala, Offred se revela uma exímia spell-maker. Suas habilidades no Scrabble não deixam dúvidas. O Comandante a convida para partidas desse jogo de tabuleiro, cujo objetivo é formar palavras a partir de letras sorteadas preliminarmente. À medida que os encontros se repetem, a aia se lembra de “todos os velhos truques [tricks] com as consoantes”. Truques/tricks, artifícios empregados para criar uma ilusão, termo que também pertence ao universo da bruxaria. Em conversa consigo mesmo, a bruxona canadense deixa escapar um trecho de um poema seu:
I return to the story
of the woman caught in the war &
in labour, her thighs tied
together by the enemy
so she could not give birth.
Ancestress: the burning witch,
her mouth covered by leather
to strangle words.
A word after a word
after a word is power.
Embora o jogo de Scrabble pareça essencialmente um arranjo da ordem da escrita, é definitivamente marcado pela oralidade. A primeira palavra que Offred forma nessa disputa, nesse jogo de poder com o Comandante, é… laringe! Ela experimenta uma sensação de ordem física quando pensa nas palavras que quer formar durante a partida: “Minha língua me parecia grossa devido ao esforço de soletrar.” Soletrar, spelling em inglês. Offred está, desse modo, efetivamente enfeitiçando Waterford na medida em que soletra a laringe. Sua língua se prepara para o exercício de spelling, do mesmo modo que Lady Macbeth, em seu famoso solilóquio, torna espessos [thick] o sangue e a noite. Loraux gargalha gorgonicamente, mais uma bruxa trágica é convocada. [Me recuso a estender ainda mais esse desvio, a encruzilhada se tornou turbilhão a essa altura, mas é preciso apenas deixar registrado que é nesse Shakespeare que encontramos não só as três bruxas, no ato inicial, mas também a figura de, ninguém mais, ninguém menos, Hécate]
Na sequência do conto da aia, Offred beija o Comandante, lê revistas antigas que ele lhe oferece como prêmio, e, finalmente, de posse da caneta de Waterford, ela vai, enfim, lançar seu feitiço, em latim, por escrito: Nolite te bastardes carborundorum! É o clímax do romance, momento em que a ruína formal do casal Waterford e do regime [e de tudo o que eles significam, simbolicamente] se inicia. Em contrapartida, é o início da liberdade de Offred. É pela linguagem que ela vai encontrar seu caminho e safar seu pescoço para fora daquela casa e daquele regime. Ela toma a caneta do Comandante, gesto cujo perigo Tia Lydia havia tão piedosamente alertado às aias em seus anos de formação: Pen is Envy! Penis Envy.

Maneiras trágicas de não matar uma mulher: salvaguardar a palavra e a garganta. Narrar suas palavras, cantar seus nomes. Offred sussurra e lê os lábios das outras aias companheiras no Centro Raquel e Léa; percebe nuances no tom de voz de Ofglen, a aia com quem faz dupla para ir ao mercado; rebola as ancas para os Guardiões, na tentativa de provocar-lhes excitação sexual; tem memória ativa dos eventos que lhe ocorreram e busca dialogar com essas lembranças; esquadrinha seu quarto em busca de vestígios deixados pela serva anterior a ela; joga Scrabble com o Comandante; escreve com o auxílio de uma caneta a mensagem cifrada recebida no quarto. Finalmente, Offred deixa uma carta ditada a leitoras e leitores do futuro, num desejo de narrar que ultrapassa sua própria existência e sua própria história. Que ultrapassa a existência e a H/história como um todo.
Enquanto soam os clarinetes que anunciam o fim do mundo, o fim da história, o fim da raça humana, a extinção das espécies animais, em suma, enquanto o aedo da corte canta o adeus à linguagem, finalizo esta conjuração ciente que as encruzilhadas a que a literatura me conduz estão repletas de mulheres falando, narrando e contando suas histórias, arriscando o próprio pescoço. A mim, cabe ouvir bem fundo o que dizem com o gládio e a corda à garganta e retransmitir esses spellings, encantado.
PS: ouvir narrativas das mulheres, ler teorias das mulheres, me tornou um professor e um leitor de outras grandezas.
[Fim da conjuração]
baixei a sua tese
Meu TCC fala das defuntas afogadas, Ofélia...