Há duas semanas venho fazendo a autossociobiografia da minha conta bancária para saber se seria possível ir à FLIP e a resposta crítica é assaz massacrante: NÃO. Lamentei e joguei para os deuses, em que não creio: vai rolar um jeito. Tinha visto no instagram um post anunciando um concurso de conto inspirado no Leminski. O prêmio era viagem, hospedagem e comida pra FLIP. Pensei: opa, é agora. Inscrevi meu conto e fui o que? FAZER MINHAS MALAS, em estrito protocolo Rubinho Acioly.
Ontem recebi um recado, fatal: "Agradecemos o interesse no Concurso de Contos Flip+Motiva. Sua inscrição foi recebida após a de número 300. Seguido de um lembrete cruel do edital: 3.2. Os 300 primeiros textos inscritos estarão concorrendo. O prazo das inscrições é: a partir das 23:59 horas do dia 16 de junho, até às 23:59 do dia 30 de junho – ou até a inscrição de número 300, o que ocorrer primeiro. Paciência. Agora sobrou para vocês se deliciarem com minha proposta inspirada no verso “que toda viagem/ é feita só de partida” presente no Distraídos venceremos. Não partirei para lugar nenhum, acompanhem abaixo a minha
EGOTRIP
- Você não vai acreditar no sonho mais louco que tive na noite passada. Hoje você vai amar! – mal se deitou no divã, ela continuou:
- Foi uma viagem, sabe? Eu me preparava pra ir, era um lugar, o lugar não era o problema, eu só não estava a fim de ir. Imagina, o casamento de um funcionário do Mário, ele prometeu que nós iríamos. Então, eu disse uma viagem, né?
Ela fez uma pausa. Em algum lugar dentro da sua mente, ela via o analista como cúmplice radical de todas as suas teses. Das vezes que o analista não respondia, ela interpretava como adesão. Ela suspirou, como sempre faz quando assume um ar de intelectual. Seguiu:
- Aqui é um espaço seguro, né? Podemos falar tudo, sem grilos, eu não tenho aquele compromisso, aquela responsabilidade com as grandes pautas. Não preciso, né?
Pela primeira vez, o analista a interrompia:
- Você iniciou sua sessão falando de um sonho.
- A gente adora perder tempo com bobagens, né? Olha eu, novamente, eu não me e-men-do. Não sei como você me a-gü-en-ta. Sabe, Antônio, o seguinte: o casamento do funcionário, colaborador, sei lá, do Mário, foi na puta-que-o-pariu de Nova Iguaçu. O Mário jurou que era prudente a gente gastar um sábado inteiro nessa função. Daí que a gente discutiu. Foi bem ruim, você sabe que eu não gosto de briguinha de casal. Tomei o meu remedin – sabe, eu voltei ao psiquiatra, eu te falei disso, não? Não me lembro, tô confusa, o remédio custa... Melhor voltar pro sonho. Enfim, não sei se foi o remédio, se foi a raiva que me deu. Enfim, apaguei, né... E o sonho começou assim: eu arrumando minhas malas. Eram quatro malas! Pra Nova Iguaçu!
- A viagem era para esse casamento, então? Digo, a do sonho. – perguntou o analista.
- Éeeeee! Quatro malas. Uma só de cremes, uma outra só de remédios, você acredita? No sonho, eu não raciocinava, né? Pra que quatro malas para ir a um casamento em Nova Iguaçu, mas, enfim, aquilo: banho, cabelo, maquiagem, vestido. No caminho, eu e o Mário a gente até se divertia – olha que legal, no sonho era divertido ir à Nova Iguaçu. Nada contra Nova Iguaçu, tá, Antônio! Eu sequer conheço, então não é uma implicância, era, sei lá. Bom, eu passei o casamento inteiro, bom, no sonho, né, fazendo minha pesquisa antropológica. Ai, que vergonha, viu? Me deu vontade, sabe, assim, de fazer uma crônica pro meu Substack da semana que vem. Mas aí, a gente voltando pra casa, depois do casamento, a gente tava não sei se era na Linha Vermelha, Amarela, avenida Brasil, o táxi passou a toda em cima de um buraco. Claro que deu merda. Saí do carro feito uma louca, morrendo de medo, “ai meu Deus, vou ser estuprada aqui”. Tentava pedir Uber, nada, eu desesperada, parando os carros “pelo amor de Deus” nada. Também, uma louca. Quem pararia? Bom, passa um ônibus, eu me jogo na frente dele. Berro pro motorista “moço, pelo amor de Deus, abre! Me tira daqui”. Ele abriu a porta, todo gentil. Eu respirei aliviada e nem me preocupei com o Mário a essas alturas. Até que me dei conta. Sabe pra onde esse ônibus tava indo? Pra Nova Iguaçu! Comecei a berrar, falei que não podia voltar pra lá, que tinha acabado de vir de lá, o motorista não me deu confiança. “É expresso, madame. Agora só em Nova Iguaçu.” Antônio, eu tava condenada a nunca mais voltar da viagem pra Nova Iguaçu. O que você acha, Antônio? Você acha que eu tenho um desejo oculto de ser pobre? Você acha que eu tenho tesão naquele motorista de ônibus, com aquele bigode? Aquela flor no cabelo, aqueles óculos fundo de garrafa, aquela camisa aberta até o umbigo? Ele tocava o ônibus, a toda velocidade, tava cantarolando um negócio, não sei vou me lembrar, acho que era: “meu coração lá de longe, faz sinal não quer voltar, meu coração lá de longe não tem vaga nem lugar”. Isso é música de bordel, Antônio! Antônio, por que eu entrei nesse ônibus?