Num terreiro em Japeri, Barthes mandou avisar que o autor está vivo
Le roi se meurt, vive le roi!
Na semana passada juntei uma turma de fé para uma missão meio braba. Religiosa, quase. Me faria corar dizer que a missão foi científica ou mesmo financeira. Joguei uma isca marota nesse mar cheio de algoritmos petiscos saborosos: bora falar da Annie Ernaux, do Édouard Louis e do Didier Éribon e entender essa tal de autoficção? Parece ruim, eu sei. Conversando no privado com as amizades, era nítida a preguiça, o ranço ou o cansaço [palavras das amizades!] em relação a esse assunto. “Mas e o Barthes não matou o autor? Estão ressuscitando, é?” A pergunta me pegou de jeito. Uma outra amizade já resvalou pra ficção científica: “cansaram do leitor-de-proveta, esgotou o banco de esperma” até mesmo uma camarada da turma do além confirmou o rumor da primeira: “Barthes baixou lá em casa na semana passada e mandou avisar que o autor vai reencanar mesmo. Vem com tudo!” disse ela, como que para bordar de beleza o diagnóstico seco da maioria, que vê na autoficção um “modismo barato e simplório.”
É verdade que andamos fartos do ensimesmamento da narrativa, desse “realismo aguado”. Está saturado o mercado, meu queridão, inventa um curso novo aê. Peraí, andamos quem? Quem acompanhou o Doudou na FLIP não estranhou a vibe SOUST que acompanhou a procissão do magreludo francês. Annie Ernaux não consegue mais acompanhar uma promoção do sabão em pó líquido [por que choras, literatura?] no aniversário Guanabara de lá sem ser assaltada por uma fã – pior, por uma leitora. Didier perdeu a paz de organizar soirées dançantes com twinks em microssungas ao lado de Ian McKellen e Edmund White [que se mandou dessa bola fervilhante e já tá na fila pra aplicar passe e dar consulta na mesma Japeri - indicação do Barthes]. O veredito é que o homossexual da terceira idade já não vive mais às sombras. [não, não tô falando da gay pálida quarentona autofictícia fazendo sintoma para seu público no Instagram que nasceu um fio de barba branca e que agora a sociedade normativa cruel vai desprezá-la porque, além de terrivelmente idosa, seus 14% de gordura corporal a impedirão de entrar na sunga da estação seguinte]. Foucault não teria segurado a marimba sociológica da viadagem contemporânea. Se vivo fosse, minha aposta é que teria saído à francesa do mundo da linguagem e teria se tornada a menina do Ministério Etrom francês. A verdade.
Voltando ao assunto, um curso meu sobre autoficção, o que é, na verdade? 90% do que vocês caras leitoras [e alguns homens passadores d’olhos em textos] leram até aqui. Este texto é mais ou menos uma transcrição de partes das aulas, das minhas inquietações, perturbações, referências e análises a respeito de Doudou, Annie e Didier. Algumas perguntas seguem legítimas. É importante entender “a viagem ególatra” dessa galera? Eu não diria que essas três figuras sejam viajantes em torno desse eu soberano, então, sim, é importante. Tem algum valor literário? Ixi, não sei, pergunta difícil, vamos precisar abrir um curso sobre valor literário para pensar juntos. Vale a pena ler? Acho que sim. Serve para alguma coisa? Como soi acontecer com a literatura, para absolutamente nada. No caso da autoficção da santíssima trindade da vez [e do curso] a minha impressão é que as escritas revelam mais um sintoma das fricções e deslocamentos sobre o modo de pensar o sujeito da escrita, o sujeito na escrita. Não é necessariamente uma novidade o “eu” no centro, afinal, somos tataranetas das bruxas românticas que não se afogaram em lagos lamartinescos.
Acredito que minha missão ingrata nesse rolé é a de pensar criticamente as coisas. De propor um debate sobre o estado das coisas da subjetividade no momento. Não é falar bem, não é falar mal de livro, de autor, de tendência, de conceito. Entendo que exista algo. Existe um fenômeno. Um texto. Um discurso. E um discurso sobre esse discurso. Tem, o que é mais importante: um grupo grande de pessoas dispostas e interessadas a ler esses textos. A entender do que se trata. É nisso que trabalho. É disso que eu gosto. Há cinco anos trabalho com grupos que me são, em sua maioria, desconhecidos, em ambiente virtual – a famosa caixa de Pandora aberta durante a pandemia. As pessoas me escutam muito mais a partir das próprias inquietações do que efetivamente atraídas pela minha figura. Ao contrário de Doudou Inri Cristo, eu não sou famoso, nem francês, nem magro,nem profeta. Elas chegam a mim por conta do tema. Isso sim me envaidece.
Esse foi um dos cursos em que houve uma partipação ativa por parte das alunas e alunos. Muitas perguntas. Mensagens de áudio por whatsapp depois das aulas com observações. Gente perdida. Diagnóstico: interesse. Vontade de saber. [Foucault tá querendo montar em mim, sai daqui, careca]. As perguntas e comentários, de um modo geral, gravitaram em torno de ponto: a veridicção. Reina uma confusão em torno desse pacto entre leitor/a e autor/a. Não à toa, este texto se abre com um gracejo metafísico. Um pacto tem sua dimensão contratual, jurídica, mas também tem seu quê de Xuxa antiga, boneco Fofão e outras seiscentas e sessenta e seis histórias horripilantes de amasiamento com o capiroto. É um contrato com o além. Desconcerta. É esse ruído, produzido quando escutamos o LP do audiolivro da vida de Doudouanniedidider ao contrário, que me interessa. Se tem ruído, posso falar de literatura. Se tá estranho, suspeito, tosco, eu posso falar de literatura. É nesse dois-lugares do pacto que balança o imenso e sólido edifício do comércio dos livros e sobram, benjaminianas e reluzentes, suas ruínas.
A conversa mais legal [foram muitas, o curso me injetou uma vitalidade com a qual eu não contava no início] que pintou no curso foi a respeito da vergonha. Embora seja uma palavra óbvia, pois é o título de uma das obras da Ernaux, a vergonha está muito presente nas obras dos três. Não são poucos os relatos, cenas e teorias em torno desse significante. A vergonha, lembra o Didier, é um afeto ligado a uma estrutura de inferiorização. É um capital simbólico negativo, percebido pelo outro. Eu tenho vergonha de que o outro me veja e reconheça em mim a minha falta de cultura, meu baixo estrato social, minha orientação sexual, que procuro disfarçar. A vergonha é uma condição extremamente subjetiva E relacional, ao mesmo tempo, uma vez que depende desse olhar para acontecer. Nesse ponto, a subjetividade é mais relacional, ela depende de uma alteridade. E, novamente, se há alteridade, posso me sentar e conversar, ler, procurar saber.
Em francês, a palavra vergonha se traduz por honte. Mas a palavra vergogne existe. Quando a gente vai ao dicionário Littré, que é um dicionário chic da língua francesa, encontramos a entrada para vergogne. Essa palavra se liga etimologicamente à raiz da palavra temor em latim. A primeira informação no Littré a respeito de vergogne é que se trata de uma palavra antiga, medieval. Mas a definição do verbete me pegou de jeito: « Terme autrefois très noble et qui aujourd’hui est devenu familier » ou “termo outrora muito nobre e que hoje se tornou familiar. Ai Minha Nossa Senhora da Palavra. Já honte, a palavra que, desde o século XI substitui vergogne, possui uma conotação ligada à perda da honra, da qual ela herda a raiz. A vergonha/honte é uma desonra, uma desgraça [alô Coetzee]
O histórico da palavra vergogne atesta: ela é uma trânsfuga de classe às avessas. Passa de uma origem nobre a uma realidade atual popular. Uma espécie de bancarrota semântica. Atualmente, a vergonha está sendo enunciada desse seu lugar popular. Familier é um termo usado para definir um vocábulo que é considerado popular. Palavras que não são ditas pelas classes dominantes, que se distinguem, entre outras mil maracutaias, pela seleta lexical. Mas não consigo ignorar a palavra FAMILIAR que explode, porque, afinal, sou falante nativo do português e a associação se apresenta poderosa demais. Porque, no meu caso, no caso de alguns leitores e leitoras, e no caso dos autores e da autora, o popular é familiar. A vergonha está atada ao que vem da família.
A discussão etimológica pode ser interessante, mas é abstrata. Eu queria saber efetivamente o quanto de vergonha havia nesses relatos. O meu lado pesquisador obsessivo falou mais alto. Contabilizei quantas vezes a palavra vergonha aparecia nas onze obras da Ernaux lançadas no Brasil, nas sete obras do Doudou e nas três do Didier. Com exceção de Monique se liberta, todas as vinte obras restantes registram, pelo menos uma vez, a palavra vergonha. Descontei as palavras derivadas e fiquei apenas com o significante vergonha. São duzentas e noventa entradas. Palavra do Kindle. Cento e uma vezes para a Ernaux [para os curiosos, em A Vergonha a palavra aparece apenas quinze vezes ao longo das oitenta e uma páginas]. É em Memória de menina em que ela mais aparece, trinta e duas vezes. Doudou contabiliza sozinho noventa e cinco entradas da palavra vergonha. Em Mudar: método a vergonha aparece trinta e seis vezes. Didier impressiona. São três obras apenas, com noventa e quatro vezes.
O que significa tanta vergonha? Eu ainda não sei. Quer dizer, tenho algumas hipóteses, mas talvez as desenvolva em outra ocasião. Quis dividir esses números, na verdade foi algo que, em tom de brincadeira, prometi aos alunos do curso – essa pergunta apareceu no fim da última aula. Prometi trazer os números, então aqui estão as minhas vergonhas. Tendo você participado da aula ou não, eu gostaria de abrir esse diálogo, de estabelecer esse pacto – agora com vocês, os vivos [assim espero que essa missiva vos encontre etc.] sobre a fartura digo a fratura digo a fatura da vergonha nesses relatos. Por que, apesar de parecer tão sem-noção, tão oferecida, tão pick-me, tão biscoitosa, a escrita de si comporta em tanta profusão a vergonha enunciada e repetida, repetida...?
Aplicando como grupo controle as ocorrências da palavra orgulho, no seu experimento científico de contagem de palavras vergonha, encontrei 12 vezes orgulho em Os Anos (Annie Ernaux), ou 16 vezes, considerando as palavras derivadas. Vergonha: 15. Considerando as derivadas de vergonha: 19
que delícia ler isso. Olha, eu acho que a vergonha está diretamente ligada à autoficção pq é justamente esse sentimento que fomenta a vontade desses autores de compartilhar suas, humm, vergonhas. A inadequação deles faz eles quererem sentir que não estão nessa sozinhos, já que encontrarão nos leitores - possivelmente- identificação.