Assim que cheguei ao Rio, em 2001, aos 17 anos ainda incompletos, atribuí-me três missões. Coisa de adolescente, esse lance de completar missões. Mas foi assim que o adolescente mineiro definiu, então manterei o termo, em homenagem ao menino. Eis as missões: 1) comprar os livros da Agatha Christie que me faltavam pra completar minha coleção [aquela série comercializada em bancas de jornal, publicada pela Record no final dos anos 80]; 2) conhecer o São Januário e 3) ver uma peça de teatro. Quase completei minha coleção, não só fui ao São Januário como consegui falar com o Felipe e o Juninho Paulista, que autografaram uma camisa que tinha comprado [e também vi, naquele ano, o Vasco ser campeão da Copa João Havelange, aquela presepada que fizeram para salvar o Fluminense do rebaixamento anterior. E por falar em Fluminense, completei a missão comprando ingresso para assistir a uma peça no teatro Carlos Gomes. Era O beijo no asfalto, do Nelson Rodrigues. Só conhecia o nome do dramaturgo da televisão, por conta da série A vida como ela é, que foi ao ar no ano de 1996. Eu tinha 12 anos à época e fui, obviamente, terminantemente proibido pelos meus pais mineiros de assistir àquilo.

Passei esses últimos anos sem pôr os pés no teatro, por distração ou por desinteresse às montagens. Fuçando o Instagram, recebi uma propaganda em que anunciavam uma montagem de A Falecida, do Nelson, pela batuta do Sérgio Módena. Preço popular, curta temporada, teatro Nelson Rodrigues, Camila Morgado como protagonista. Comprei o ingresso na hora. Mal sabia eu que me depararia, vinte e quatro anos depois, com fragmentos simbólicos das três missões do mineirinho deslumbrado recém chegado.
O título já nos informa o destino da protagonista Zulmira. Na cena de abertura, o teatro se apresenta como personagem: atores trajando máscaras trágicas se movimentam silenciosamente, como uma espécie de prólogo grego. Não é necessário que se diga nada, a história é velha conhecida do público. A seguir, vê-se Zulmira, a protagonista que dá nome ao título, posicionada dentro de um nicho, em uma imponente parede de azulejos pretos que domina o centro do palco. Seu caixão. A partir dali, a falecida ganha vida para contar sua trajetória até o terceiro ato, quando será reconduzida ao túmulo.

A montagem de Módena atualiza as questões rodriguianas, sem abrir mão daquilo que é mais caro ao teatro: a palavra em cena. O que Rodrigues escreve e Módena põe em cena não é a jornada íntima de uma personagem e sim a tragédia de toda a sociedade carioca. É aquilo que o clichê chama de clássico, o que garante [não sozinho, veremos adiante] o sucesso de uma obra teatral: a capacidade de a farsa trágica, termo utilizado no texto rodriguiano, representar não a história da escalada histérica e fanática de Zulmira; do desespero apático de Tuninho, o marido; ou da ganância financeira de Timbira, o dono da funerária e sim a de encenar o trágico da própria sociedade.
Adultério, futebol, contravenção, lotação, fanatismo religioso, tudo isso tendo como cena a zona norte carioca: a gramática temática e o espaço imaginado onde se desenrola a ação trágica pensados pelo anjo pornográfico são apresentados desde o primeiro ato. Em oitenta minutos, o público testemunhará o desenlace dessa tragédia burguesa genuinamente carioca.
Em Nelson Rodrigues, o drama burguês faz seu giro e retorna ao elemento trágico. A privatização da vida doméstica das personagens e a busca de uma sentimentalidade como meio de aproximação entre a plateia e o palco, processos que caracterizaram a virada epistemológica da tragédia palaciana para o drama burguês no final do século XVIII, fazem, na obra de Rodrigues, novos movimentos. O doméstico e o sentimental adquirem brilho trágico.
Outro acerto da montagem é o de usar simples objetos cênicos como elementos integrantes: a mesa rolante, a parede de azulejos pretos com fosso, o refletor/personagem ausente Glorinha [esse fantasma que não será representado por nenhuma atriz e que atormenta nossa protagonista] os véus das idosas, nada ali cumpre função meramente decorativa. A simplicidade desses elementos revela paulatinamente a proposta dramatúrgica ao longo do espetáculo. Possuir uma função dentro da dramaturgia: há de se aplaudir a aposta exitosa de Módena em conceber sua montagem no vazio visual do cenário e transformá-lo, pela enunciação, naquilo que se quer. É verdade que a rubrica do próprio texto rodriguiano já sinalizava essa mise en scène, mas daí a fazer acontecer exitosamente são outros cruzeiros. O mesmo pode-se dizer da luz. O enquadramento da borda do fosso da parede/esquife que guarda o corpo da falecida, o rosto martirizado do marido na cena derradeira e os claros e escuros, que imprimem uma estética expressionista, outra marca rodriguiana, tudo isso constrói a narrativa, dando-lhe camadas que fazem a montagem cintilar. Mais que isso, reforçam a dimensão essencialmente coletiva e comunitária do teatro, como um trabalho de uma equipe.

A meu ver, se algo pode ser considerado especialmente sublime nesta montagem, é o trabalho do texto. Matéria fundamental de qualquer representação dramática desde o início dos tempos, na montagem de Módena o texto rodriguiano é preservado de modo a marcar propositalmente uma temporalidade anterior à da exibição. A presença da segunda pessoa do singular, com os verbos conjugados segundo a norma culta, a indumentária, as referências a bondes, ao Ademir Menezes, atacante de primeira ordem nos anos cinquenta, ao dinheiro vigente à época, o cruzeiro, que tanto é mencionado como encenado [o público vê as notas em cena] causam um curioso efeito de atualização, já bastante conhecido desde os gregos. O jogo teatral se repete: ao atualizar para a Atenas do século V a.E.C. os mitos e heróis antiquíssimos, a plateia via não a fixação temporal de um passado devoluto, mas a conexão daquele passado, daqueles valores, com os da própria pólis atualmente. A mesma dinâmica se dá aqui: Zulmiras, Tuninhos, Timbiras encenam os valores da sociedade carioca de agora que, cruzeiros e Ademires à parte, não mudou tanto assim. O reconhecimento se estabelece no agora.
Quanto ao elenco, mais uma vez vê-se presentificado o expediente antigo que, a meu ver, é especialíssimo: o fato de um/a mesmo/a ator/atriz representar várias personagens ao longo da peça. De acordo com as rubricas e a ficha de elenco da primeira apresentação da peça, em 1953, cada personagem era vivida por um/a ator/atriz diferente. A escolha de Módena vivifica, tal qual as personagens mascaradas da cena de abertura, o teatro. A montagem segue à risca o texto rodriguiano, com pouquíssimas adaptações. A mais importante e, pelo efeito ambíguo que provoca nessa montagem, a mais interessante, é o fato de Zulmira ser loura e não morena. Lembro que a cartomante, vivida por Stella Freitas, alerta Zulmira para ter cuidado com uma mulher loira, o que deflagra a paranoia da protagonista. Acontece que a Zulmira de Sonia Oiticica, de 1953, era morena. A de 2025, Morgado, é loira.
Qualquer elogio ao trabalho de Camila Morgado parece redundante, portanto, não vou abrir aqui exceção. Morgado dá vida a uma Zulmira que opera no limite preciso da histeria, com jogos de culpa que oscilam entre a frigidez atormentada e o êxtase religioso. A atriz conduz Zulmira até a borda [perigosa] do histrionismo, em que se correria o risco de tornar ridícula a personagem. Morgado não toma conhecimento do perigo e dança na borda, para fascínio de quem assistiu à peça. O mesmo pode-se dizer de Thelmo Fernandes [que eu já tinha encontrada naquela minha primeira ida ao teatro, em 2001, no papel do Cunha do Beijo no Asfalto] e Gustavo Wabner, o ganancioso e mulherengo Timbira, dono da funerária. A minha única ressalva é com a caracterização do Pimentel, amante de Zulmira, responsável por revelar ao marido a realidade adúltera da esposa falecida, no clímax da peça. Alguns lugares comuns e gestos grandiloquentes me soaram sem sentido, o que não compromete em nada a montagem.
O diálogo rodriguiano encontrou nesse elenco a expressão necessária para estabelecer com o público aquilo que julgo ser o único, possível e bem-sucedido diálogo direto com o público durante o espetáculo. [tenho o mais absoluto pavor a peças interativas]. Extinta a gramática antiga, com prólogos, epílogos e párodos [momento em que o coro, na comédia, se afastava da ação dramática para falar diretamente ao público], no drama moderno, lembra Peter Szondi acerca da relação do drama com o espectador:
“Não sendo a réplica dramática um enunciado do autor, ela tampouco é uma fala dirigida ao público. Este se limita a assistir ao que dramaticamente se pronuncia: silencioso, de mãos atadas, paralisado pela visão de um outro mundo. Sua total passividade (sobre a qual repousa a vivência dramática) deve, porém, ser revertida numa atividade irracional: o público era (e é) arrastado para o interior do jogo dramático, passando de espectador a sujeito falante - pela boca de todos os personagens, bem entendido. A relação espectador-drama conhece apenas total separação ou total identidade; ela desconhece tanto a intromissão do espectador no drama, quanto sua interpelação por ele.”
Nesse sentido, o espectador, silente [na sessão em que estive, surpreendentemente, não observei nenhum facho de luz vindo do celular nervoso da plateia, tão ocupada estava em participar ativamente do drama no papel de PÚBLICO] O importante em uma peça é que cada elemento represente bem seu papel. O meu, como audience [me fascina que a palavra para público em inglês seja essa, em que está convocado o ouvido como modo de receber o espetáculo teatral] é de ouvir.
Nem só de texto se faz uma peça de teatro. Nessa montagem, os elementos cênicos são dinâmicos, dançam pelo palco como elementos constituivos da história: guarda-chuva torto de Zulmira, a mesa com rodinhas, que cumpre a função cênica de leito conjugal, mesa de sinuca, maca funerária, escrivaninha do amante Pimentel. E temos o lenço, talvez o objeto cênico mais importante, metateatral, desde Otelo de Shakespeare – uma peça, aliás, que narra a derrocada trágica do/a protagonista, motivada por ciúmes. O lenço acena: jogo teatral que torna cego de ódio o mouro, marido traído. Iago, como um diretor de teatro, faz Otelo ver o lenço da esposa, a loura Desdêmona, nas mãos de Roderigo. Lenço que, inclusive, prenunciará a morte da protagonista feminina [nas duas peças], em breve as louras falecerão.
Na dramaturgia rodriguiana, a morte da adúltera renderá vantagem financeira ao esposo, sagrado corno. Do mesmo modo, as escolhas de Módena permitem ao público atualizar os grandes temas burgueses que compõem essa tragédia carioca: adultério, desejos reprimidos, a grosseria machista e o futebol são sabiamente encenados nessa montagem. O futebol, pathos que Nelson Rodrigues soube converter com sucesso para suas obras [não falo aqui das crônicas]. O dramaturgo disse, a propósito disso:
“Realmente eu fiz A Falecida que é a história de um torcedor do Vasco com suas implicações poéticas […] eu faço e farei 200 peças sobre o futebol sem prejuízo da poesia ou da arte dramática.”
Por falar em Vasco da Gama, não é desimportante a menção/insistência no time carioca. Esse significante cumpre função trágica primordial na conclusão do enredo. O desespero pueril de Tuninho, torcedor do Vasco da Gama, percorre toda a peça. Só quem já assistiu a uma partida qualquer de meio de turno da série B do futebol brasileiro do Vasco no São Januário pode entender o quão patético é o marido de Zulmira, bem como perceber a ideia descabida que foi sua aposta com os parceiros de sinuca na vitória do Vasco. Aliás, passados setenta anos, a tragédia de ser Vasco da Gama parece não ter se alterado em nada.
Não é sem surpresa que é justamente sob os auspícios desse significante que a peça se encerra. Morta Zulmira, Tuninho vai viver a catarse de ter-se descoberto corno indo ao Maracanã assistir ao jogo do Vasco x Fluminense, no dia do enterro de Zulmira. Depois de ter apostado com todo o estádio lotado, jogar notas de cruzeiro para o alto, vê-se a personagem, sozinha, no centro do palco. Toda a luz do palco se apaga, enquanto alguns raios de luz iluminam, à guisa de auréola divina, o rosto do Tuninho, que se encontra no centro. Na parte da frente, à direita, um foco grosso de luz divide a atenção do público: a cruz da cova sem túmulo de Zulmira, como se fosse a de uma indigente. O rosto do marido se crispa em lágrimas, a tensão sobe, a boca parece querer dizer algo, até que, enfim, explode: “Vasco da Gama”. Espetáculo de primeira grandeza. Palavra.
Em cartaz no Rio de Janeiro até dia 4 de maio. Depois a peça para São Paulo. O valor inteiro do ingresso é mais barato que um bilhete de cinema.
Quando assisti à peça, gostei, mas achei um equívoco a escalação da Camila Morgado porque por mais incrível que ela seja (e atua bem na peça) jamais me convenceu de ter pisado no subúrbio do Rio. Me pareceu uma personagem de Copacabana.
Que texto brilhante, continua a obra!