Um encontro singular
ou o ensaio sobre o conceito da riqueza entre o campesinato mineiro & outras encantarias
Era um sonho dantesco, tombadilho…
O texto que escrevi sobre a pobreza da elite literária paulistana® correu léguas. Ele agregou uma comunidade momentânea, o que me permitiu jogar conversa fora com muita gente. Foi inesperado. Satisfatório, eu diria. Afinal, aquele texto parecia convocar uma voz coletiva e a sensação que me deu é a de que fui apenas o cavalo. Não se brinca assim com um lado-de-lá, me diz um voz de-dentro. Se conjurar, aparecem.
Para além da oportunidade de trocar impressões e chistes com algumas pessoas a respeito de um tema que me é muito caro, o after daquele convescote me deixou com a sensação de que tinha outra coisa para sair dali. A cada vez que aquele texto voltava a me rondar, eu era acometido de culpa. Neuroticamente, eu calculava que voltar aqui e requentar o assunto seria ficar lambendo minhas próprias bolas. Nada parecia pior, portanto.
Acontece que algo faltava de fato e não dizia respeito necessariamente ao texto em si, Não era como se eu tivesse perdido alguma sacada que merecesse a parte dois. Também não dizia respeito à nenhuma grandiosa reflexão, afinal, convenhamos, aquele texto é uma performance afetada. Mas tinha algo. Eis que um sonho que eu tinha tido há uns anos me aparece repetidas vezes, como lembrança, nos últimos dias. Era um saci na mata sussurrando meu nome, enquanto eu caminhava na antiga estrada de terra da minha cidade natal, estrada essa onde outrora passava o trem que levava ao Rio de Janeiro. Hoje não há mais trilhos, sobrou o caminho. Estava buscando obsessivamente alguma resposta, dentro da picada naquela mata densa que é o texto, tentando encontrar alguma coisa em meio àqueles adjetivos pomposos e sinais gráficos poluentes. Nada. Eu fecho os olhos e vejo um saci saindo de trás de uma árvore – e depois de outra, e outra. Pronto, virou Twin Peaks. “Vem cá, vem cá, menino”. Duas gargalhadas, baixinho. “Ô menino, aqui ó....” Olho, não vejo nada. Sigo caminho. O que vem a seguir é estranho, mas é o que vem a seguir, não posso fazer grande coisa a respeito.
Um dia me deparei com um excelente comentário lá na rede azulzinha a respeito do meu texto: “bumba meu boi da maioba escolhendo repertório e vcs preocupados em dar laudo sobre elite literária de são paulo? vou orar por vcs.” Gargalhei tão alto quando li aquilo. Na boa lição sobre chiste que o velho Freud ensinou, acabei me dando conta de que ali estava a ponta solta. Pista freudiana é o escambau. O que estalou ali foi o gargalhar. O saci rindo para mim de dentro do mato. Ele me balançou o cachimbo. Ri de volta, fui ao encontro dele. Aquela mata podia ser muito fechada, mas era minha também, natal.
O encontro com o saci foi assim: ele me disse: ô menino, tu se lembra, tu caminhava aqui nessa estradinha de chão, onde só passa moto e cavalo cagão [ontem mesmo, na madruga, te deixei dois toletes de presente, tu pegou não, menino?]; bom, sabe o que falam de ti lá na cidade, né? caminhando fora da estrada de asfalto... quem caminha torto, encontra o que não deve [risada alta]. tu não fuma, né? então, o lance lá da literatura é o seguinte, meu nobre. ele parou pra acender o charuto. Perguntei: a gente segue andando, vai anoitecer? Ele: só trouxa não enxerga no escuro. tu é trouxa? eu te canto o caminho. ou não. tu faz o caminho aí [risada]. A vaca tá agitada, será que chove, saci? senta aí. não, não é formigueiro, é montoado de terra só. perigo se inventa é sempre. a história, menino, é a seguinte:
não tem método: mudar coisa nenhuma. pinoia. tá vendo a estrada aqui, um dia passou trem nela. eu sei que tu sabe, tô te lembrando, tu anda esquecido. esse trem levava todo mundo daqui té o Rio de Janeiro. já rodou foi relógio desde o dia em que eu tô por aqui, menino. os que desceram, os que venceram, ui, no Rio, voltaram, de carrão, pra contar as lorotas deles. não sei o que eles contaram, eu não fiquei pra ouvir. vou te contar só do que eu sei e o que eu vi.
Ele inspirou, a voz mudou: acho que preciso usar um outro registro para falar contigo, afinal,tu fazes parte dos que foram PARA o Rio. Os exilados de não-sei-que-nobre-subtantivo. Os trânsfugos de classe. Trânsfugo. Quem foi que inventou essa palavra ridícula? Parece francês. Quantas vezes você já contou lá embaixo a história da sua cidadezinha de montanha de vinte mil habitantes, desprovida [gostou, gostou?] de aparatos culturais? Sou capaz de situar os referentes: uma igrejinha, o tempo imutável, a falta de acesso aos bens materiais e simbólicos que formaram o grandioso homem literato® em que te tornaste. Pausa. tudo isso é verdade, mas o que tu não entendeu é que tu precisa contar essa história de outro jeito. invertidamente. tu não é um invertido? contar a história dos teus ganhos, menino. tu na infância não perdeu foi nada. foi nos acontecido deste lugar, nas histórias daquilo que você e seus amigos lá de baixo tão chamando de pobreza, miséria, é que tu colheu aquilo que tu chama de repertório simbólico cultural ou qualquer outra patifaria que tu usa quando quer falar que manjou dos paranauê de contar história. ah, tu não chama? parabéns. voltando, tu não fez isso sozinho. tu é um representante de uma comunidade literária. ah os pacová com o maurício francês. tu tá andando nesse chão indo-e-vindo faz mais de vinte anos. conterrâneo teu já mandou a letra: foca na travessia. tu não chegará lá, como tu nunca chegou na porra da frança. chegar é ficar. é permanecer com as roupas de lá. atravessar um oceano pra comer manteiga em excesso, com tanto de vaca aqui… vaca daqui, vaca de lá, a diferença não é só do leite e do capim. o lance é a lorota que contam sobre o leite e o capim. vaca mesmo, só faz pastar. e tu tá pastando igual vaca ou tá se ligando? não, não, melhor não comer manteiga antes da cirurgia de vesícula. a história segue, onde estávamos?
ótimo, estamos perdidos. então, teu pai, aquele canastrão, piadista, acrobata das palavras, não tem diploma, tem? as nuances do contar sem relevar nada, fazer sumir as palavras do relato, como dizem lá na faculdade? trickster. tua avó costureira que juntava a família à força para contar mil vezes as mesmas histórias de família: 90% caô, 5% Alzheimer, 5% lembrança afetuosa dos tempos onde ela foi alguma coisa pra alguém, no aguardo eterno do retorno do marido comedor de professoras. penélope. dos três sobrenomes que tu carrega de herança, qual tu usa, conta lá? o da contadora de história da família. narradora. e aquele carnaval lá que rolava todo fevereiro? te contar: só existe Fevereiros em Santo Amaro porque tem gente para passar a história pra frente. glória imorredoura. ninguém foi buscar o carnaval de manhumirim em lugar nenhum. tudo se fez aqui, plumas, paetês, carro alegórico em forma de flor jorrando água, quatro ônibus lotados de viado subindo a serra e o escambau. serralheiro, marceneiro, tocador de bumbo, costureira, carnavalesco. na tua esquina. tu não tinha um trabalho aí de faculdade sobre isso? Pós-doc. Oh là-là. Risada. acontece, moleque, que tu vai ter que ser honesto e contar que desceu pro Rio com a tal bagaceir-bagagem literária já cheia. e teus Eduardo Luís [nome de pobre, hein?] e tuas Ana Ernildes? tu tá ligado que abraçou o tronco da brejaúba? O saci emposta a voz, sotaque lusitano, encosta o dedo indicador junto ao lábio superior, à guisa de falso bigode: “Dos heróis que cantaste, o que restou senão a melodia do teu canto?” Ui, mas Drummond é mineiro. mas falou tuga, oras. e tu, tu fala mineiro?
te contar, meu bão, essa cultura aí, tua literatura, tu não descobriu ela com os literatos da cidade grande. tu até encontrou lá o que de alguma maneira já conhecia aqui. juntou lé-com-cré. vou falar bonito: os livros das casas que tu frequentaste enquanto garoto não eram repletos de significados. Nenhum detentor ou herdeiro daquelas obras que tuas mãozinhas infantis tocaram sabiam te dizer muita coisa a respeito deles. Nem tampouco atribuíam qualquer tipo de valor à posse, ou, ainda, à leitura daqueles livros. Aquele amontoado de encadernados organizados em estantes sistematicamente limpas e enceradas com óleo de peroba eram significantes para ti. Abri-los te fez unir dois mundos literários. Unir. Não partiste do deserto cultural rumo ao Eldorado letrado. É preciso desarmar esse conceito. Papo pro professor agora, sacou?
o que tu tem com isso se geral tá perdido na história do caminho sofrido para fora da infância pobre em direção ao rico mundo da cultura literária? o que caralhotas tu tem a ver com as culpas e as estradas de quem tá precisando fazer sociologia burguesa, perdoar pai, vingar sua classe? tu não tem classe, tem comunidade. a comunidade dos sem classe. hahahahaahahaha. tu não é os Estados Unidos, meu nobre. tu não tem do que se vingar, ninguém te fez nada. O saci cantarola Belchior: “não eu não sou do lugar dos esquecidos, não sou da nação dos condenados, não sou do sertão dos ofendidos.” essa cultura da cidade grande, que tu foi descer essa estrada pra conhecer, que foi arrumar jeito de valorar, ou de entender quais são os jogos de valor, quais são os significados atribuídos a eles, são outros parangolés. “Um simples cantador das coisas do porão.” do porão da casa da vó, de onde saiu. sentiu essa, Cardosão? dos porões da casa mineira. hahahahahaha.
literatuuuuura mesmo, tu achou aqui, nas tardes de cachaça dos teus pais [eu tava lá, tomando a minha, na encolha]. cerveja comendo em cima do cérebro da rapaziada adulta, música no talo, as crianças encostadas tomando 6, 7 garrafas de coca-cola, vendo aquele espetáculo: conversinhas sacanas, ah, a arte de contar atrocidades eróticas de forma cifrada na presença das crianças… tua mãe dançando e dublando os poemas do velho-do-chapéu-que-diz-ser-três cantados pela Bethânia, cigarrinho no canto da boca “se eu quiser fumar eu fumo, se eu quiser beber eu bebo.” bebia. berrava agitando o copo, sem derramar líquido. “são-me simpáticos os homens superiores porque são superiores, e são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também, porque ser inferior é diferente de ser superior, e por isso é uma superioridade a certos momentos de visão. simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter, e simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades” tu ali, seduzido por aquelas palavras, aquela mulher dos cabelos muito pretos, minha amiga Pombogira encostadinha ali. “se eu quiser fumar eu fumo, se eu quiser beber, eu bebo”. de domingo era missa, aquela igreja de concreto armado, a primeira da américa latina, toda pintada a mão, tu lá, lendo paredes. Decodificando simbolicamente o mundo, nas tuas belas palavras de hoje. catolicismo popular ainda é possível pro meu povo: ritual, festa, devoção. o recado que tu recebeu da benzedeira, espinhela caída, simpatia de asma escrita em papel antigo, arquivo morto do seminário dos padres. tudo isso te acontecendo e tu dando um jeito de costurar na sua cabecinha os vividos, os relatos. a gente lá do Encantado engrossando esse caldo. menino arteiro, não era assim que chamavam os mais bagunceiros?
As bibliotecas silenciosas, as mesas postas para as debates, os pais com diplomas, taças de vinhos, lastro cultural, os risos inexistentes e a vontade de ter sido filho desse lar, desses pais, de ter tido essa vida, isso nunca te te fez vibrar um pentelho, moleque. tu chegou lá, sentou tua bunda larga nas cadeiras, e começou a berrar-gritando algum espaço de valoração nas mesas importantes da Literatura. o teu rolé tá nos grupos pequenos, não-institucionais, onde se reúnem uns malucos que decidem ler umas paradas que TU escolheu, para ouvirem aquilo que TU tem a dizer a respeito. tua riqueza, teu jeito de estar no mundo literário. no teu mundo, do teu jeito, na tua literatura. tá tudo bem de querer compartilhar com mais gente. o Encantado tá aí pra te dar um gás.
é claro que é bom dar uma gastada na galera de vez em quando, mas, já ficando por aqui porque eu tô ligado que tu já se ligou no recado: faz o teu, dá teu nome, encontra tuas histórias, faz teu trajeto e deixa a teoria autossocioficcional para quem é dessa missão. tu não fica repetindo que é benjaminiano? Cadê teus marinheiros, teus lavradores e teus mortos pra contar? o caminho para a tua literatura é aquele mesmo, vou te lembrar: tu adorava aquela inscrição no pórtico dos cemitérios do Caju, na frente dos quais tu passou por mais de quatro anos seguidos, voltando pra casa depois do trabalho. eu não tava lá, mas o pessoal me contou, ahahahaha, aquele pessoal de cemitério sabe tudo, moleque. caramba, me perdi. a inscrição! vou lançar a braba e meter o pé, moleque. tu, tu volta pro que é teu, para de ficar revirando lixeira de salão burguês. REVERTERE AD LOCVM TVVM.
solta o som do bumba-meu-boi da Maioba. e o de Manhumirim, que também há.
“te contar, meu bão, essa cultura aí, tua literatura, tu não descobriu ela com os literatos da cidade grande.”
De arrepiar os lembretes do Saci, hein?
Uma história com sotaque sim. Eu amo.