Meus pais me visitaram recentemente, vindos de Minas. A eterna pergunta protocolar permanece a mesma há mais de vinte anos: do que garnir o embornal? Café, taioba, linguiça, queijo, mexerica, manga, ovos caipiras – o motivo da atual visita exigia uma lista tímida de mantimentos, para minha tristeza. Ah, livros. Caixas de livros. Se posso atribuir algo ao quinhão das histórias de fratura biográfica dos tempos de pandemia certamente foi o número e a natureza das mudanças de casas que fiz. E, a cada mudança, a ansiedade em resolver um problemão: mover a biblioteca física.
Desafortunados proprietário/as de bibliotecas que se mudaram sabem exatamente o que virá a seguir: para além dos cuidados cotidianos com os livros, a mudança dispara muitos gatilhos: quanto vai custar essa brincadeira? As empresas de transporte não costumam ser simpáticas aos blocos compactos de papelão recheados de livros. Os custos do serviços se elevam consideravelmente. Para além de toda a gestão do evento, precisamos adotar uma estratégia. Compra um Kindle, boba…
Será a fatídica hora de adotar protocolo Marie Kondo? [minimalismo é sintoma neoliberal] Venderei minhas preciosas Cosac Naify para arcar com os custos da mudança? [prefiro negociar um rim] Deixarei em casa de amigas e amigos? [com tímida metragem quadrada para os próprios haveres]. Nem sempre os prazos e condições da mudança permitem que adotemos a melhor solução, que é a de preservar a biblioteca em sua integralidade e encontrar espaço e estante na morada nova. Há cinco anos venho sacrificando a integralidade da minha biblioteca em nome de algum critério que se apresenta mais urgente. Alguns livros vão ficando pelo caminho.
Em 2023 fui de mala e cuia livros para Minas. Não sabia se definitivamente. Portanto, levei tudo o que pude carregar. Deixei estante e alguns volumes para trás, adotando a máxima: um dia volta. Narrar as razões e os livros de que precisei me desfazer não é possível, respeitem essa dor. Dois anos depois, retorno ao Rio, mas nem toda a minha biblioteca migrou de volta comigo. A estratégia atual é a seguinte: minha biblioteca está em dois lugares/estados e vou administrando. Acontece frequentemente de precisar de um livro que não está aqui comigo para uma consulta. Ou de eu achar que não está comigo e encontrá-lo, dias depois, próximo a um outro. A nova catalogação/arrumação ainda não me é íntima, nem ideal. Pela primeira vez não sou capaz de encontrar rapidamente um livro em meio ao milheiro que habita comigo. Paciência.
Nesta visita, meus pais trouxeram mais uma quantidade de livros. À distância, administrava com minha mãe a lista do que vinha. A minha angústia maior foi selecionar quais eu deixaria em Minas. Os enjeitados. Quando chegaram até mim, novas confusões. O livro que julguei que viesse, não veio, o que procurava cá estava, na verdade, lá. Entre os negligenciados, importantíssimos volumes de que precisava para ontem. Preciso dizer que nem só de lamentos que fariam o Twitter pegar em armas vive este triste despossuído.
Deslocar frequentemente a biblioteca demanda um corpo a corpo, um livro-na-mão. O fato de circular livros criou uma dinâmica particular de desfossilização da minha biblioteca. Meu acervo fica menos estático. Organizando os livros recém-chegados, fazia um rápido confere na possível existência de insetos, retirava poeira, o mínimo para ter a consciência tranquila antes de depositá-los no novo lar. Beijava um Dante aqui, acalentava um Pessoa tristonho ali. Em meio aos chamegos, surgiam anedotas sobre como/quando adquirira uma tal obra, uma surpresa de como viera parar aqui essa edição repetida, um remorso motivado por uma compra feita por impulso e, também uma alegria: oi, sumido.
E como essa foi uma semana dedicada às listas, enrolo abaixo a minha lista de livros entremeados de outras histórias e associações, um pouco no espírito de tentar dissolver a impressão de que este relato sobre deslocar uma biblioteca narre um evento do quilate da travessia do cartaginês Aníbal com elefantes asiáticos à guisa de carros de guerra, Alpes acima/abaixo, para arrepio das tropas romanas. Vamos aos livros:
1 - Livro que mais edições possuo: Odisseia, Homero. Essa brincadeira de colecionar traduções da Odisseia nasceu quando resolvi seguir a trilha da Emily Wilson, tradutora dos épicos homéricos para o inglês, que lançou a intriga: como se traduz o termo πολύτροπος, característica atribuída a Odisseu no primeiro verso do poema. Isso me levou a buscar todas as soluções dadas por quem tinha traduzido a Odisseia até então. Esse sou eu preparando uma aula. Quem tiver a chance de ouvir/ver a Wilson falar sobre/ler sua tradução poética para Ilíada e Odisseia, não deixe de fazer. É puro tesão essa mulher tocando fogo em Homero e criando imagens poéticas deslumbrantes. Infelizmente não tem no Brasil e só conto com a versão digital, por isso ela não figura aqui. Mandem jobs para que o compulsivo aumente a pilha de livros idênticos.


2 - Livro que está a mais tempo comigo: O misterioso caso de Styles, Agatha Christie. Esse resistiu a todos os espurgos e mudanças, apesar da fragilidade da edição. Não é novidade a associação doença/literatura na minha vida [Atotô, meu pai – não, não vou falar da Sontag]. Aos 12 anos, convalescendo de uma cirurgia [!!!!] para a remoção de uma unha encravada no dedão do pé, encontrei esse livro na estante dos meus pais. Jamais saberemos como ele tinha ido parar lá nem quem cometera a audácia de deixar um livro em uma estante. Esse sobreviveu porque é a prova material do início do meu amor pela literatura. Porém, não fosse a falta de acesso a podólogo/as, talvez eu não tivesse tido tempo para ser fisgado pela vontade de ler. Também Agatha Christie foi minha primeira lista. Possuo essa coleção esfarelada completa, que demorei mais de quinze anos para completar.

3 - Adesão mais insólita à biblioteca: Pléiades - Marcel Proust e André Gide. Certa feita, quando da morte de uma senhora sem herdeiros, proprietária de um apartamento térreo em Ipanema, o inventariante, conhecido de um conhecido meu, precisava resolver uma pendenga de imediato: se desfazer daqueles livros daquela tralha em caixas. Fui acionado na qualidade de lixeiro presenteado: centenas de obras francófonas me aguardavam em caixa, um festival de rinite. A mais atual certamente datada de circa 1963. No meio daquilo, havia duas Pléiades: Proust e Gide. Pensando que, no limite, ganharia um argent na revenda dos volumes chics, recolhi. As herdeiras do apartamento [que não quiseram ficar com os livros] são cinco cachorras francesas de pedigree. Os detalhes divertidos dessa história ainda virão sob forma de romance pela pena deste, mas adianto que envolve a preservação para a posteridade dos cães em miniatura de pedra opalina. Disseram-me ser valiosíssima a gema. Gide e Proust vieram ornar minha estante ao lado de Rimbaud, em pedantíssima parada gay.
4 - Livro que facilmente poderia ser minha biografia: Uma vida violenta de Pier Paolo Pasolini. Não vou elaborar. Quem sabe, sabe e os crimes ainda não prescreveram para confessá-los publicamente.
5 - A coleção incompleta que mais me dói o coração: Mulheres Modernistas da Cosac Naify. Queria viver em um mundo em que realmente as pessoas odeiam livros, porque uma edição dos Contos Completos da Flannery O’Connor custa oitocentos barão no mercado das pulgas.
6 - Edição mais antiga: Miragem, Coelho Netto. Minha edição data de 1926. [e está mais bem conservada que algumas edições carcomidas pelo oxigênio lançadas há dois anos por grandes editoras independentes] Esse livro está para sempre relegado à categoria dos jamais reeditados. Não entendo a razão, é uma narrativa histórico-alegórica sobre o 15 de novembro: a República brasileira como miragem. Será que está tão datado assim?


7 - Livro que me faz rir sempre que lhe cruzo o olhar: O casamento sempre foi gay e nunca triste, José António Almeida. Tenham amigas que saibam escolher um bom livro para te ofertar e te fazer rir. A dedicatória é uma pérola que só o pungente catolicismo português poderia porporcionar.


8 - Livro que sumiu, reapareceu, tornou a sumir: Exu, Vagner Gonçalves da Silva. EU JURO. Esse livro aparece/some/reaparece. Status atualizado: desaparecido. Se perdi, se dei, o biografado me responda. Exu foi parar misteriosamente na minha mochila quando fui dar um rolé na França em 2016. Em uma agradável noite de verão, resolvi passear pelo campo depois das nove da noite, quando um amigo, de carro, desesperado, me resgata em meio aos girassóis: entra, que se um javali te encontra, você vai morrer estraçalhado. No dia seguinte, vinho e cigarettes em honra dele na primeira encruza, foi o que tinha à mão.
9 - Último livro que comprei: Olha-me e narra-me, Adriana Cavarero. As amizades leitoras foram muito contundentes em relação a essa obra, então comprei e agora ele ocupa prioridade na burocrática pilha de livros a ler urgentemente. Furou a fila sem despachante. Coisa fina, me prometeram.
10 - Categora off-livros: melhor enfeite de biblioteca: Uma piranha empalhada com meu nome gravado com corretivo-liquid-paper-branquinho. Voraz, eterno e irascível, assim pretendo morrer e repousar, entre livros. O autor desta newsletter recomenda escutar esse clássico do cancioneiro popular brasileiro em homenagem à piranha. De nada.
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adorei! eu já me mudei umas 7 vezes e passei por esse processo dolorido que você escreveu. hoje eu tenho a menor biblioteca de todas. porém, em março comprei 14 livros com a desculpa de que tenho a menor biblioteca de todas kkkkkk Pra completar, assim que decidi pegar alguns de volta na casa da minha mãe, ela não deixou porque a depender da organização da sala e da decoração, ela usa meus livros lá. Anna Karenina, Flaubert, Sthendal, Os Dostô todos, Os Lusíadas. Outro dia sumiu meu Proust de casa. Achei lá, no centro da mesa junto com um Alice no país da Maravilhas! Adorei a categoria enfeites de estante!
finalmente li e morri de rir e de me identificar. fui grande leitora da Agatha, nessa e em outras edições. je t'aime <3