Ensaio sobre o conceito de pobreza entre a elite literária paulistana
Nem fools, nem proscritos: bovaristas
Acompanho o cenário literário nacional e internacional por missão laboral. Há 20 anos tomei a estapafúrdia e deliciosa decisão de viver profissionalmente como professor de literatura. Este não é um post sobre meu desejo, nem um exórdio aos dados alarmantes da queda drástica de leitura entre as camadas mais abastadas da sociedade brasileira [revendo o texto antes de publicá-lo, percebi que em nenhum momento anterior ele deixou implícita a questão sobre a queda da leitura. Deixarei aqui registrado para falar a respeito disso, ou não].
No propósito de estar atualizado sobre os debates relativos a novas autoras lançadas, últimas traduções, reimpressões de obras esgotadas há tanto esperadas, a parte menos interessante [morbidamente mais interessante, confesso] é acompanhar o que é dito na ágora literária mais famosa do país: o espaço geográfico/imaginário da chamada por eles mesmos elite literária paulistana®. As últimas efemérides me chamaram a atenção para uma espécie de crença cega [ou de cuidadosa mitologia] a respeito das origens modestas daquela/es que hoje, a duras penas, paramentam o Olimpo literário da capital bandeirante [cafoníssimo adjetivo, mas acho que orna com o tema].
Para aqueles que nasce[ra]m, vive[ra]m e pisa[ra]m fora daquele espaço literário [não blanchotiano, nunca blanchotiano], causa imediato estranhamento o discurso proferido em fanho acento, sem embaraço, das próprias trajetórias de heroi/na/s. Partidos dos mais longíquos rincões da própria metrópole, galgaram, sob duros olhares de desprezo e desconfiança dos autóctones palacianos jamais nômades, o restrito espaço da ágora exclusivíssima. Tudo isso, dentro da própria metrópole. Vinte quilômetros, às vezes trinta quilômetros, duas ou três linhas de ônibus [inter]municipais separam nossa/os heroi/na/s da impossível geografia da elite intelectual paulistana®. É de fazer corar de vergonha Homero e sua poça rasa mediterrânea.
Ela/es querem ser os novos Édouard Louis de Higienópolis [sem a miséria material e simbólica concreta da infância deste] e as Annie Ernaux de Perdizes [sem as rugas, substituídas pelo icônico batom vermelho-sem-anistia da Mac, linha feministas hoje®]. Francófona/os claudicantes, não é incomum vislumbrar uma étincelle de ressentimento em seus discursos, que brilham em alguns chistes a respeito/a despeito da falta de trajetória acadêmica minimamente sólida que possuem, esquecidas as importantes e constantes contribuições [também] universitárias dos dois escritores fetiches do momento.
Ouvindo suas trajetórias, não é incomum encontrar: casa própria [casinha deixada por papai, funcionariozinho público, trabalhou com carinho, os diminutivos são de força maior, eu suponho, em comparação aos palacetes em que vivem amigos e conhecidas da elite literária paulistana®. Quanto à trajetória escolar, nada de Jagatá ou Bambuluá, ou qualquer outro adjetivo lúdico dado à terra de Cocanha freiriana onde os coleguinhas abastados teriam estudado. Com vozes embargadas, relembram da escol-inha [particular] de bairro, a professor-inha de misérrimos tamancos, os dedos secos de giz de cera. Nessas hagiografias literárias, ninguém vive de aluguel, os pais de nenhum/a de nossa/os heroi/na/s possuem aquilo que em bom português chamamos de corre de POBRE. Não tem escola pública no etos da nouvelle élite paulistana. Falta algo que falte, falta escassez, falta metáfora de pobreza, no caso de não ter havido miséria concreta. A elite literária paulistana® se lê, se entende e se distingue [risos] do vieil argent pelo traço de uma pobreza e de uma distância que não fazem sentido algum.
Nesses tocantes exemplos do profundo abismo de classes entre a elite literária paulistana® e os arrivistas das Cólquidas da municipalidade, está sobrando uma leitura equivocada dos conceitos de distinção do Bourdieu [presentes sólida, bela e literariamente em Ernaux e Louis]. Não que esse conceito precise estar presente, ou deva sequer ser levados em conta, mas, como dizem os franceses, bon, bref. Desde que M. Bellegueule pisou em Paraty, toda/o pressão-baixa-franja-assimétrica-tez-pálida-nascido-fora-da-rua-Angélica se tornou um trânsfugo de classe. A pobre da Elena Ferrante já pôde descansar, inclusive. Essa é a mitografia do/a autor/a paulistana/o contemporâneo/a por ela/es intitulada, a meu entender muito equivocadamente, autoficção. Humildemente, proponho uma categorização mais consentânea: afirmação violenta do próprio eu com notas de delírios autorreferenciais.
Tivesse eu nascido nas remotas terras dessa intransitável capital, eu teria criado uma autoficção [ou um delírio autorreferencial, o que seria mais apropriado para meu nascimento] balzaquiana. A mim, São Paulo parece uma excelente versão da Comédia humana do Balzac. Vibrante, multifacetada, irônica, humana, pois cheia de vontades aleatórias e mesquinharias que são constitutivas das personagens humanas e, pasme, literárias. Uma sociedade em que um bando de Rastignacs querem desesperadamente ser aceitos nos salões dos grandes burgueses ou serem convidados para uma recepção chez la Marquise d’Espard, cavando um espaço raro na intimidade social da antiga aristocracia, tem mais a cara de São Paulo. Nem Louis, nem Ernaux: Honoré de Balzac. [ O que mais pequeno burguês/paulista pode haver que um escritor adicionar uma partícula de nobreza ao seu sobrenome?] Isso não é tão pejorativo como pode soar a princípio, ao contrário. É um retrato mais verossímil, mais interessante, mais complexo e, por isso mesmo, paradoxalmente mais literário/sociólogico de uma cidade que tem missão para contar grandes e maravilhosas histórias.
Assumemos o Lucien [de] Rubempré, vivamos e escrevamos nossas ilusões perdidas.
E todos eles lerão (os que lerem) achando que você está falando de algum conhecido deles. E rirão de si pensando que riem do outro. Acho tudo uma delícia.
Outro dia escrevi aqui um texto sobre o perigo que é falar de si, justamente sobre essa coisa meio egoica de supervalorizar narrativas próprias que, muitas vezes, são bem qualquer coisa. Me senti mal depois, meio ranzinza, cheia de pinimbas pouco justificadas rs seu texto me ajudou a ver que não tô sozinha nessa pinimba! Obrigada haha